Artigo referente à palestra "Teoria Constitucionalista do Delito" (parte 2).

Bases e perspectivas da Teoria Constitucionalista do Delito Luiz Flávio Gomes falecom@luizflaviogomes.com.br) CONTINUAÇÃO) Se o prevencionismo for equilibrado pelo princípio da subsidiariedade do Direito penal, pode-se chegar a um sistema perfeito, isto é, toda preocupação prevencionista, fundada na mera infração da norma imperativa, deve ser disciplinada em outros ramos do Direito (administrativo, civil, tributário, comercial, trabalhista etc.). Deixando, assim, o Direito penal como soldado de reserva. Se os outros sistemas normativos (imperativistas, subjetivistas) falharem, então entra em ação o Direito penal, como ultima ratio. Mas se o Direito penal existe para a tutela de bens jurídicos, por que não utilizá-lo antecipadamente, antes mesmo da violação desse bem jurídico (antes do desvalor do resultado), e já para proibir e punir o próprio desvalor da conduta? Porque o injusto penal não é constituído somente do desvalor da ação, senão também (e principalmente) do desvalor do resultado (jurídico); porque o delito não é mera infração do aspecto imperativo da norma, senão, sobretudo, violação do aspecto valorativo; porque toda sanção penal, ao menos com certeza a sanção que priva a liberdade do ser humano, implica a perda de um bem jurídico de elevadíssima importância. Logo, em razão da proporcionalidade, somente é justo tangenciar esse bem jurídico tão-relevante quando a conduta do agente tenha concretamente afetado outro bem jurídico de importância correspondente ou maior. Certamente não haveria outra ocasião mais oportuna que o limiar de um novo milênio para se desenvolver todas as transformações acima delineadas na teoria do fato punível. Muitas delas, aliás, já citadas na doutrina pátria (Cézar Bitencourt, Juarez Tavares, Juarez Cirino, Regis Prado, Chaves Camargo, Capez, Cernicchiaro, Silva Franco, Damásio, Luisi, Toledo, Nilo, Queiroz, Greco etc.). Fazia falta, entretanto, uma sintetização de todos esses avanços que a ciência penal está experimentando. É o esforço que estamos procurando fazer. De buscar uma nova síntese dentro da teoria do delito, uma síntese constitucionalista e garantista. E como toda síntese histórica passa a ser automaticamente uma nova tese, não cabe dúvida que a dogmática crítica apresentará suas antíteses e novas sínteses surgirão. Assim avança a humanidade (assim se nota progresso na teoria do delito). Tudo quando está dito poderia permitir o nascimento de uma nova era penal, regida por um redimensionado Direito penal que, doravante, deverá ser reestudado, (re) compreendido e (re) ensinado por todos os dogmáticos, intérpretes, professores e aplicadores. Tudo resulta de uma feliz combinação de várias idéias, teorias e princípios extraídos de um denominador comum, que é a Constituição, que, como máxima expressão normativa, constitui o norte de todo o ordenamento e de toda construção jurídica. A Constituição, com efeito, demarca os fins legitimadores do Direito penal, estes condicionam as normas penais e estas condicionam a teoria do fato punível. Daí falar-se em teoria constitucional ou constitucionalista do fato punível. Desde várias perspectivas, mas fundamentalmente dos princípios constitucionais e político-criminais (Roxin) da exclusiva proteção de bens jurídicos (o Direito penal somente pode ter como missão a proteção fragmentária e subsidiária de bens jurídicos) e da ofensividade (não há crime sem lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico protegido – nullum crimen sine iniuria), assim como da teoria da imputação objetiva, tornou-se possível redimensionar as várias etapas (dogmáticas) de valoração do fato punível (tipicidade material, antijuridicidade, culpabilidade e punibilidade). Nesse sentido, os já incontáveis trabalhos científicos sobre a imputação objetiva divulgados no Brasil (Tavarez, Prado, Damásio, Galvão, Calegari, Chaves Camargo etc.) contemplam, com efeito, para além de uma abrangente e percuciente visão da teoria da imputação objetiva, uma extraordinária e sugestiva proposta tendente a uma completa revisão na teoria do delito (isto é, do fato punível). Numa espécie de despedida definitiva do positivismo formalista de Binding, Von Liszt e Beling, de Rocco (tecnicismo-jurídico) e de muitos dos pressupostos metodológicos do finalismo de Welzel, que marcaram a realização prática do Direito penal em todo o século XX, concebe-se agora a teoria do fato punível desde uma sólida base constitucional (Palazzo, Sax, Brícola etc.). Muda, radicalmente, o método do Direito penal e a posição do juiz: o triunfo do método da ponderação sobre o da mera subsunção conduz à proeminência do juiz, a quem cabe em cada caso concreto dizer qual dos princípios em conflito deve preponderar. Para o juízo (positivo) de tipicidade penal, entendida doravante em sentido material e constitucional, já não bastará, destarte, a mera realização formal da conduta descrita na lei penal (na fattispecie). O fato concreto, para ser típico, requer: (1) a realização da conduta descrita (subsunção formal da conduta ao ID_TIPO), (2) a realização do resultado naturalístico (exigido nos crimes materiais); (3) o nexo de causalidade (nesses crimes); (4) a imputação objetiva da conduta (criação de um risco proibido relevante); (5) produção de um resultado jurídico relevante e (6) imputação objetiva desse resultado. Aliás, nos crimes dolosos, ainda se exige um sétimo requisito, que é a imputação subjetiva (dolo e eventualmente outros requisitos subjetivos especiais). A revolução que esse conjunto de idéias é capaz de provocar começa pela inadmissibilidade da existência do delito sem a presença de um resultado jurídico (afetação ao bem jurídico). Com isso vai para o segundo e rebaixado plano a “velha” e formalista classificação dos crimes em materiais, formais e de mera conduta. Parte-se da premissa de que todos os delitos (comissivos ou omissivos, dolosos ou negligentes) possuem resultado jurídico (concepção material do crime), nos termos da exigência feita pelo art. 13 do CP. O delito somente se consuma, aliás, quando acontece esse resultado (não quando ocorre a conduta ou tão-somente o resultado naturalista). Não há dúvida de que o delito, quando constitucional e materialmente enfocado, não só representa uma visão garantista, e nessa perspectiva expressão do aclamado Direito penal mínimo (Baratta, Hassemer, Ferrajoli, García-Pablos, Zaffaroni, Cervini etc.), senão também, como sublinha Gimbernat Ordeig, a subtração do Direito Penal “de la irracionalidad, la arbitrariedad y la improvisación”. O resultado jurídico, de outro lado, somente pode ser imputado ao agente na medida em que guarde exata correspondência com o risco proibido que ele criou (Roxin, Damásio de Jesus, André Callegari etc.) e desde que esteja no âmbito de proteção da norma. Por qual motivo o comerciante de armas ou mesmo seu fabricante não responde pelo homicídio cometido com tal instrumento? A doutrina clássica respondia: evita-se o regressus ad infinitum por falta de dolo. Na verdade, de tais condutas derivam riscos permitidos (autorizados), logo, eventual resultado jurídico não pode ser-lhes objetivamente imputado. Exclusivamente o risco proibido é penalmente relevante. Uma lesão validamente consentida pela vítima tampouco entra no âmbito do risco juridicamente proibido. A mesma coisa cabe ser dita em relação às lesões esportivas, à intervenção cirúrgica, aos ofendículos, às condutas impostas pela lei (estrito cumprimento de dever legal), às situações de exercício regular de direito etc. Resultados jurídicos derivados de riscos permitidos, autorizados, não são juridicamente desvaliosos. Conseqüentemente, não pertencem ao âmbito do proibido pelo ID_TIPO penal (teoria conglobante, Zaffaroni). Não são diferentes os resultados socialmente adequados (teoria da adequação social – Welzel) ou insignificantes (princípio da insignificância – Roxin). A tendência, como se vê, é enriquecer materialmente a teoria do fato típico (Tavares). Por conseguinte, indaga-se: essa concepção não constituiria um certo esvaziamento da categoria da antijuridicidade? A resposta é negativa, pelo seguinte: o fato típico, entendido não como mera subsunção formal, senão, sobretudo, como fato ofensivo ao bem jurídico tutelado (fato materialmente típico), nada mais representa que o aspecto positivo do juízo de antijuridicidade, do mesmo modo que as causas justificantes (legítima defesa, estado de necessidade) exprimem o seu aspecto negativo (cf. nesse sentido Mir Puig). A tipicidade material não esvaziou a antijuridicidade, ao contrário, enriqueceu-se. Por isso é que devemos admitir que a relação entre essas duas categorias do delito foi modificada. O ID_TIPO perde sua neutralidade valorativa, sua concepção formalista (Gallas). Como ID_TIPO de injusto, já significa uma expressão (quase definitiva) da antijuridicidade (ratio essendi, dizia Mezger). É fundamentador do delito (do fato punível) e delimitador do seu raio de abrangência. A conduta para ser típica precisa ajustar-se à descrição legal, materialmente ofender o bem jurídico protegido (concepção material do delito como fato ofensivo típico e antijurídico – cf. Brícola) e ser objetivamente imputável ao agente. Nesse sentido, o ID_TIPO penal nem é mero indício da antijuridicidade (ratio cognoscendi – Mayer, Welzel) nem tampouco é definitivamente a antijuridicidade (teoria dos elementos negativos do ID_TIPO: Gimbernat, Reale Júnior, Paulo Queiroz): é sua expressão provisória (Toledo), que será afastada quando presente uma causa concreta justificante (legítima defesa, por exemplo), que demanda sempre um balanceamento dos bens jurídicos em conflito (proporcionalidade). Para o juízo de tipicidade, em suma, já não bastará a mera antinormatividade (contradição da conduta com a norma isolada) ou a simples desobediência à norma – Jakobs, Willenstrafrecht –, ou a infração a um dever – Welzel). Mister se faz a denominada tipicidade material (lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico): conduta delituosa ou resultado desvalioso é tão-somente o que entra em conflito com os interesses tutelados pela norma (Cobo del Rosal e Vives Antón, Rodriguez Mourullo etc.). Fundamental, portanto, é sempre perguntar, como premissa básica, qual é o bem jurídico tutelado em cada caso concreto (Régis Prado, L.F. Gomes) e se esse bem jurídico entrou no raio de ação da conduta criadora de riscos (princípio da ofensividade) (cf. L.F. Gomes, Princípio da ofensividade, São Paulo: RT, 2002). Antijuridicidade, de outro lado, esgota o conceito de injusto penal, desde que se exteriorize num fato típico. O injusto penal, em suma, é o fato típico já valorado como antijurídico e não acobertado por nenhuma causa excludente da ilicitude. A culpabilidade, por seu turno, está fora do conceito de injusto penal (leia-se: do delito entendido como injusto penal– cf. posição de Damásio de Jesus e grande parte da doutrina brasileira). Culpabilidade é exigibilidade de conduta diversa (que deriva do aspecto imperativo de norma, que determina uma certa pauta de conduta). Resulta excluída quando se trata de agente inimputável ou que não tinha a possibilidade de conhecer a ilicitude da conduta ou que não podia, nas circunstâncias, agir de modo diferente etc. A culpabilidade recai, assim, sobre a possibilidade de agir de modo diferente, mas para sua graduação (e, em conseqüência, graduação da pena) também é relevante a atitude interna (Gesinnung) revelada (exteriorizada) pelo agente no ato concreto cometido (ninguém pode ser reprovado somente por sua atitude interna, pelo que pensa, pelo modo de vida – não se pode advogar por um Direito penal de autor ou de intenção – Gesinnungstrafrecht). A atitude interna é relevante para a medida da pena exclusivamente quando manifestada num fato criminoso concreto, em um injusto penal efetivo. Essa atitude interna, por seu turno, exterioriza-se: (a) na atitude de menosprezo ao bem jurídico (dolo direto de primeiro grau ou de segundo grau), ou (b) na indiferença diante do bem jurídico (dolo eventual) ou (c) na falta de cuidado ou e cautela diante do bem jurídico (culpa) (Figueiredo Dias). Esse objeto do juízo de reprovação (atitude de menosprezo, indiferença ou descuido diante do bem jurídico) é graduável e, portanto, ao lado de outras circunstâncias (motivação, conseqüências, personalidade, conduta social etc. – art. 59 do CP), serve para a dosagem da pena. É precisamente esse o sentido da palavra culpabilidade dentro do citado art. 59 (sentido esse que não se identifica com as duas outras acepções da culpabilidade, que são: a) culpabilidade como pressuposto da punibilidade e requisito do fato punível e b) culpabilidade como limite máximo da intervenção estatal: cada um deve ser punido na medida da sua culpabilidade – CP, art. 29). A punibilidade, por último, complementa o conceito de fato punível, que compreende: (a) o fato típico materialmente ofensivo ao bem jurídico tutelado, (b) ausência de causas excludentes da antijuridicidade, (c) culpabilidade e (d) a própria punibilidade em sentido estrito (possibilidade jurídica, em tese, da pretensão punitiva estatal. O fato deve ser ameaçado com pena para ser crime). A punibilidade em sentido amplo, por sua vez, fundamenta-se na necessidade da pena (sobre os conceitos de merecimento e necessidade de pena, em Direito penal, cf. Roxin - Derecho penal-PG¸ trad. Luzõn Pena et alii, Madrid: Civitas, 1997 e Alice Bianchini, Pressupostos mínimos da intervenção penal, São Paulo: RT, 2002). Na ausência de qualquer um desses requisitos positivos (fato materialmente típico, culpabilidade e punibilidade) ou mesmo diante da presença do requisito negativo da antijuridicidade (causas justificantes) não há que se falar em fato punível. Conseqüência imediata: torna-se impossível a persecução penal. Quando de plano já se comprova que o fato é atípico (porque não preenche os requisitos típicos formais ou porque não é ofensivo, ou porque não causou um resultado jurídico penalmente relevante ou porque não é objetivamente imputável ao agente), ou não é antijurídico (legítima defesa, estado de necessidade) ou que o agente não é culpável (inimputabilidade, salvo a doença mental, que implica medida de segurança, erro de proibição escusável inexigibilidade de conduta diversa, etc.), ou mesmo quando presente uma causa impeditiva da punibilidade (falta de condição objetiva de punibilidade, imunidade diplomática, escusa absolutória etc.), não há que se falar em fato punível. Conseqüência prática de todas essas mudanças na teoria do delito: quem não realizou um fato punível, ou, em outras palavras, quem realizou o fato que não é penalmente punível, não deve sequer ser processado. Resulta clara e inequivocamente ilegítima a persecução penal nesse caso. Com grande felicidade, a recente Reforma do Código de Processo Penal, presidida por Ada Grinover, contempla, a propósito, a defesa preliminar em todos os processos. Isso irá permitir que a defesa invoque e que o juiz reconheça, de pronto, a inexistência do fato punível. E se iniciada, apesar disso, a ação penal? Deve ser trancada, via habeas corpus (falta de justa causa), salvo se a prova colhida, ab initio, não for exuberante, indiscutível, quando exigir não só um juízo cognitivo, senão também valorativo, pois nesse caso, então, far-se-á necessária a persecutio criminis para a devida comprovação da impunibilidade do agente ou do fato. Sempre tendo presente a advertência de Jiménez de Asúa (5), são esses os novos rumos da teoria do fato punível no novo milênio. A expectativa direciona-se no sentido de profundas mudanças que, certamente, serão bem-vindas, em razão do seu cunho constitucional e garantista. E que essas mudanças comecem, desde logo, pela redefinição da teoria do bem jurídico. NOTAS (1) A moderna teoria do fato punível, p. 2 e p. 10 e ss. (2) SILVA SÁNCHEZ, La expansión del derecho penal. Aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales, p. 180. FERRAJOLI assinala também como escopo fundamental do Direito penal o de evitar as penas informais (a vingança privada, os linchamentos etc.) (Diritto e ragione, 6. ed., p. 325 e ss.). (3) Aproximación al derecho penal contemporáneo, p. 373. (4) Citado por DE LA CUESTA AGUADO, Norma primaria y bien jurídico: su incidencia en la configuración del injusto, p. 138. (5) “Pese a las continuas crisis que sufre el Derecho penal (...) periódicamente las nuevas doctrinas y sus autores se ven impelidos a volver sobre sus pasos y fundamentar sus ‘nuevas’ posturas en otras que se consideraban superadas” (apud DE LA CUESTA AGUADO, Norma primaria y bien jurídico: su incidencia en la configuración del injusto, p. 137).

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