Artigo referente à palestra "Teoria Constitucionalista do Delito" (parte 1).

O autor, Dr. Luiz Flávio (e), em conversa descontraída após a palestra de sábado, com o prof. Robaldo e o pres. de honra da UNIGRAN, Murilo Zauith.
Bases e perspectivas da Teoria Constitucionalista do Delito Luiz Flávio Gomes falecom@luizflaviogomes.com.br) Do ponto de vista analítico, preocupa-se a teoria do fato punível em apontar quais são os pressupostos da punição (leia-se: quais são as categorias do fato punível). Ela pode ser construída a partir de realidades físico-naturalistas (causalismo de Von Liszt e Beling, v.g.) ou ontológicas (finalismo de Welzel, por exemplo), das finalidades da pena (sistema teleológico-racional de Roxin ou funcionalista sistêmico de Jakobs, por exemplo) etc. Dois sistemas clássicos de fato punível existem (de notar-se que estamos nos referindo ao delito com o sentido de fato punível): (a) o bipartido (tipicidade/antijuridicidade e culpabilidade ou tipicidade e antijuridicidade); (b) o tripartido (tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade). Os traços diferenciadores essenciais residem na relação que deve haver entre tipicidade e antijuridicidade assim como na posição da culpabilidade na teoria do fato punível. Há correntes que admitem uma unidade conceitual entre tipicidade e antijuridicidade (Jescheck e Weigend; Otto; Silva Sánchez; Cobo e Vives; no Brasil: Juarez Cirino dos Santos (1); nessa mesma linha está a teoria dos elementos negativos do ID_TIPO), outras assinalam a independência entre elas. Seguem a linha tripartida o modelo clássico (ou causal-naturalista) de fato punível (Von Liszt e Beling), o modelo neokantiano (filosofia dos valores/Mezger) e o modelo finalista (Welzel). No Brasil, como sabemos, posição peculiar é ocupada por uma parte da doutrina finalista (Damásio de Jesus, por exemplo) que não concebe a culpabilidade como integrante da teoria do delito, senão como pressuposto da pena. Neste trabalho estamos assumindo que a teoria do fato punível deve ser elaborada a partir das finalidades do Direito penal (de proteção de bens jurídicos, de estabelecer um conjunto de garantias frente ao ius puniendi, de reduzir a violência – inclusive a estatal – e de evitar a vingança privada) (2). E se o Direito é um conjunto de normas (como efetivamente é), suas finalidades somente podem ser cumpridas por meio dessas normas (de conduta e de sanção). Silva Sánchez, com precisão, leciona (3): “Dentro da perspectiva teleológico-funcionalista, estimo que a elaboração categorial e sistemática da teoria do delito deve ter como ponto de referência os complexos fins legitimadores do Direito penal (...) a orientação funcional teleológica do sistema somente pode acontecer por meio da mediação da teoria das normas jurídico-penais (...) as normas constituem o instrumento essencial de que serve o Direito penal para o cumprimento dos seus fins (...) as normas primárias expressam o objetivo de regulação do Direito penal mediante o estabelecimento de diretrizes de conduta (...) a doutrina da antijuridicidade penal (do injusto penal) está atrelada à missão das normas primárias, enquanto a doutrina das demais categorias do fato punível acha-se presidida pela missão das normas secundárias. Em conclusão: os fins do Direito penal condicionam imediatamente a estrutura e o conteúdo das normas jurídico-penais e, mediatamente, a configuração das categorias do delito e seu respectivo conteúdo”. Ampliando-se um pouco mais a conclusão que acaba de ser transcrita, cabe sublinhar: “os princípios, normas e valores típicos do Estado Constitucional e Democrático de Direito condicionam os fins legitimadores do Direito penal, que por sua vez condicionam o conteúdo e a estrutura das normas penais, que por seu turno condicionam o conteúdo e a estrutura da teoria do fato punível. É nesse sentido que se pode falar numa teoria constitucional do fato punível”. O fato punível assim delineado (leia-se: a partir da teoria das normas penais) é constituído, desde logo, de duas categorias básicas (de dois níveis primários de valoração): (1.º) fato contrário ao Direito e descrito na lei penal (injusto penal) e (2.º) sancionabilidade penal (ou punibilidade, aqui, entendida em sentido amplo). Somos partidários, portanto, partindo-se de uma visão macrosistêmica do delito, de um sistema bipartido, porém com bases bem diferentes dos outros sistemas análogos. De outro lado, cada um dos dois níveis de valoração do fato punível, por sua vez, pressupõe outros dois subníveis (ou categorias). Desse modo, o sistema que, em princípio, seria bipartido, passa a ser quadripartido. O injusto penal (= fato antijurídico e típico) conduz à exigência de dois requisitos: fato materialmente típico e ausência de causas justificantes (excludentes da antijuridicidade). Um é positivo e o outro é negativo. O fato materialmente típico, por sua vez, passa a contar com os seguintes requisitos: (a) conduta (formalmente típica), isto é, realização formal da conduta descrita na lei; (b) resultado naturalístico típico (que só é exigido nos crimes materiais – homicídio, por exemplo); (c) nexo de causalidade (entre a conduta e o resultado naturalístico nos crimes materiais). Até aqui temos a dimensão fática do fato materialmente típico. Porém, na atualidade, já não podemos nos contentar exclusivamente com essa dimensão naturalística ou mecânica ou ôntica). Há uma outra: a axiológica (ou normativa), que é composta da: (a) imputação objetiva da conduta (leia-se: criação ou incremento de um risco proibido juridicamente relevante); (b) produção de um resultado jurídico relevante (lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico protegido; (c) imputação objetiva desse resultado (ao risco proibido criado ou incrementado). Dois são os aspectos relevantes na imputação objetiva do resultado: (a) conexão direta com o risco criado (o risco deve se realizar no resultado) e (b) que esteja o resultado no âmbito de proteção da norma. Quando se trata de crime doloso, ainda há a imputação subjetiva (dolo e outros eventuais requisitos subjetivos especiais). Por ora, sublinhe-se que o “resultado jurídico penalmente relevante” (a ofensa – lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico –) deve reunir algumas características: (a) transcendental, isto é, resultado jurídico perturbador dos direitos ou liberdades de terceiras pessoas (ninguém pode ser punido por ter afetado direitos ou liberdades próprias); (b) significativo (não insignificante; princípio da insignificância). A categoria da sancionabilidade penal (punibilidade em sentido amplo), por seu turno, pressupõe (1.º) a culpabilidade do agente – fundamentada na exigibilidade de conduta diversa – e (2.º) a punibilidade (em sentido estrito) do fato (fato ameaçado com pena). Sintetizando: o fato punível possui quatro requisitos: (a) fato materialmente típico; (b) antijuridicidade (leia-se: ausência de causas excludentes da antijuridicidade); (c) culpabilidade; (d) punibilidade. Os dois primeiros, depois de valorados como tais (fato materialmente típico e antijurídico), integram o conceito de injusto penal; os dois últimos fazem parte da categoria da sancionabilidade (isto é, da punibilidade em sentido amplo). Recordando-se que não existe antijuridicidade penal sem tipicidade, pode-se dizer que o injusto penal nada mais é que o fato materialmente típico não justificado por nenhuma causa excludente da ilicitude (legítima defesa, estado de necessidade). De outro lado, a presença de uma causa excludente da ilicitude (legítima defesa, por exemplo) não significa que o fato é típico (proibido) e permitido ao mesmo tempo. Em toda causa de justificação há um conflito de interesses e o que ocorre é que o fato materialmente típico (ofensivo ao bem jurídico) é valorado como um mal menor diante da tutela de outro bem jurídico de igual ou superior relevância (as causas excludentes da antijuridicidade, destarte, sempre exigirão um conflito entre bens jurídicos, que deve ser solucionado segundo as regras da proporcionalidade). Exemplo: “A” matou “B” em legítima defesa. “A” praticou um fato típico (porque a morte de um ser humano está contemplada no art. 121 do CP). Aliás, fato materialmente típico, porque acabou causando uma lesão ao bem jurídico (vida). Mas “A” matou “B” para salvar sua própria vida (que se achava sob risco diante da agressão injusta da vítima). Logo, nesse caso, a morte de “B” acabou sendo um mal menor diante da necessidade de se tutelar outro bem jurídico de igual valor. Tendo havido proporcionalidade, o fato materialmente típico praticado por “A” restou justificado (houve equilíbrio entre os bens jurídicos e o resultado acabou sendo proporcional). As diferenças entre o sistema constitucionalista do delito que acaba de ser desenhado e as teorias do delito (legalistas e formalistas) subscritas por grandes setores dogmáticos no século XX (finalismo de Welzel, especialmente) são, fundamentalmente, as seguintes: para além da subsunção formal da conduta à letra da lei (tipicidade em sentido formal), torna-se imprescindível (a) que o fato seja objetivamente imputável ao agente e (b) que seja ao mesmo tempo materialmente ofensivo ao bem jurídico protegido pela norma penal (primária). O delito, destarte, não é só desvalor da ação (seu fundamento não reside exclusivamente na conduta do agente criadora de riscos proibidos) senão, sobretudo, desvalor do resultado (produção de um resultado jurídico penalmente relevante para o bem jurídico). A tipicidade, por seu turno, passa a ser entendida em sentido material (fato materialmente típico), porque foi enriquecida pelo sentido e conceito material da antijuridicidade (lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico protegido). Mas essa ofensa (lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico) já não é valorada diretamente dentro da antijuridicidade, sim, no (próprio) seio da tipicidade (material). Um exemplo muito claro dos reflexos práticos da comparação entre os dois sistemas (o legalista ou formalista e o material ou constitucionalista): durante várias décadas, a doutrina e a jurisprudência legalista e formalista admitiram que o simples ato de conduzir veículo sem habilitação já constituía infração penal (antiga redação do art. 32 da LCP, primeira parte). Tratava-se, nessa perspectiva, de uma infração de perigo abstrato (segundo afirmava a doutrina dominante e a jurisprudência quase unânime). Bastava realizar a conduta. O injusto fundava-se no simples desvalor da ação (no ato de dirigir). Não se perguntava pelo bem jurídico protegido. A contravenção era entendida como simples infração da norma (infração do aspecto imperativo da norma). Não se considerava o aspecto valorativo de norma primária (que existe para a tutela de um bem jurídico). Era uma infração de simples atividade e de mera desobediência. Punia-se porque o sujeito desrespeitou a ordem (imperativa) de não dirigir. Não importava se dirigia bem ou mal ou se conduzia perigosamente (causando riscos proibidos) ou não. Não havia nenhuma preocupação de se verificar se algum bem jurídico teria entrado no raio de ação do risco proibido criado ou incrementado. Para o juízo de tipicidade (formal) bastava a (mera, simples e paupérrima) subsunção formal da conduta à letra da lei. Essa concepção do delito e do Direito penal (formalista, legalista, método meramente subsuntivo ou lógico-formal, tecnicista) morreu com a Constituição de 1988 e, se ainda não foi sepultada, deve sê-lo prontamente. Depois da última decisão do STF sobre o tema (STF, RHC 80.362-SP, relator Min. Ilmar Galvão, Informativo STF nº 230, de 28.05 a 1.º.06.2001), no sentido de que o art. 309 do Código de Trânsito Brasileiro derrogou o art. 32 da LCP, tornou-se insustentável o posicionamento antigo. De outro lado, e tendo em vista a nova configuração típica (art. 309), já não basta o ato de conduzir, mister se faz colocar em risco concreto os bens jurídicos protegidos. Na nova concepção o fundamento primeiro do injusto não reside na conduta, senão no resultado jurídico (perigo concreto). O delito, agora, já não significa só infração ao aspecto imperativo da norma, senão, sobretudo, infração do seu aspecto valorativo. É preciso, destarte, que os bens jurídicos protegidos (tanto o imediato – segurança viária – quanto os mediatos – vida, integridade física das pessoas, patrimônio etc.) entrem no raio da ação perigosa (criadora de riscos), gerando um concreto perigo de dano. Sem isso, não há que se falar em infração penal, senão em infração meramente administrativa. Quem hoje dirige veículo automotor em via pública sem criar nenhum risco proibido relevante (leia-se: quem dirige normalmente, sem colocar em risco concreto bens jurídicos alheios), não pratica o delito previsto no art. 309 do CTB (sim, realiza uma mera infração administrativa) (cf. nesse sentido antigo voto de Cernicchiaro, em Gomes, L.F., Estudos de direito e processo penal, São Paulo: RT, 1999). O método e alguns dos pressupostos do finalismo, em suma, gradualmente, estão sendo abandonados, ganhando realce um método mais acentuadamente normativista (que lembra a metodologia neokantiana) (isso está cada vez mais evidente com a teoria da imputação objetiva e, agora, com o princípio da ofensividade). Segundo Schünemann (4), “o sistema sistemático teleológico – difundido a partir de Roxin – firmou as bases de uma profunda modificação do sistema do Direito penal, caracterizada por uma total refutação do sistema lógico-objetivo do finalismo; isso significa um ulterior desenvolvimento do neokantismo”. O que ganha notável expressão no novo sistema constitucionalista do crime é que ele passa a ser compreendido não como infração do aspecto imperativo da norma primária (que determina coativamente uma determinada pauta de conduta), senão principalmente como infração do aspecto valorativo dessa mesma norma. O centro da antijuridicidade (leia-se: do injusto penal), desse modo, passa a estar vinculado com esse aspecto valorativo ou objetivo, não com o prisma subjetivo ou imperativo. O juízo de tipicidade (e, conseqüentemente) de antijuridicidade da conduta passa a constituir um juízo de desvalor fundamentado no resultado jurídico – lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico - objetivamente imputável ao agente. A infração da valoração normativa, por isso, expressa a tipicidade material assim como a antijuridicidade. Já a infração da norma imperativa de conduta (que impõe uma determinada pauta de conduta - que consiste na exigibilidade de uma conduta) passa a constituir a essência do conceito de culpabilidade, mesmo porque é exatamente nesse momento que devemos constatar se o sujeito (concreto) tinha ou não condições de atuar de modo diverso (do que atuou). Conceber o delito sob o prisma objetivo (valorativo) ou subjetivo (imperativo), como se vê, é muito importante. Porque justamente conforme o ponto de partida abre-se a possibilidade de construção de sistemas completamente distintos. Nossa posição acerca do conteúdo da norma primária e da antijuridicidade, como se nota, condiciona toda a construção da teoria do fato punível (leia-se: dos seus vários níveis e subníveis de valoração). Remarque-se que para os sistemas subjetivos ou predominantemente subjetivistas (finalismo penal, por exemplo), a mera contradição do fato com a norma isolada, à medida que já manifesta uma “vontade contra o direito”, já bastava para fundamentar a antijuridicidade. Mas isso significa pura e simplesmente a antijuridicidade formal (que nada mais é que a antinormatividade). A antijuridicidade formal nada mais é que a contradição com a norma imperativa (ou de determinação). Realizada a conduta e contrariada a norma imperativa, o delito estava acabado. Nisso residia não só a teoria do injusto pessoal, senão também a concepção de que a antijuridicidade deve ser vista sob a perspectiva puramente formal. Antijuridicidade e antinormatividade se confundem. Aceitava-se como antijurídico o fato que na verdade era puramente antinormativo. Coerente com essa construção é o entendimento de que o ID_TIPO penal é mero indício da antijuridicidade. No dia-a-dia forense, em conseqüência, o órgão acusador não se preocupa com nada mais que demonstrar os requisitos típicos formais do fato. Demonstrada a tipicidade nestes termos literais ou formais, automaticamente já se admite que o fato é antijurídico, salvo se o acusado comprovar uma causa de exclusão da ilicitude. Essa é uma visão acentuadamente formalista do injusto penal e do Direito penal. Significa ver a norma penal como se fosse qualquer outra norma administrativa. Ignorava, essa concepção, a riqueza que está detrás da concepção valorativa da norma (ao lado, é verdade, da vertente imperativa). De outro lado, com base nesse tecnicismo jurídico os dogmáticos lógico-formais passaram a dividir os delitos em: (a) delitos materiais (que prevêem e exigem o resultado naturalista para a consumação); (b) delitos formais (que prevêem o resultado, mas dele se prescinde para a consumação); (c) delitos de mera conduta (não prevêem nenhum resultado naturalístico). Essa classificação só tem sentido para o preenchimento do aspecto naturalista ou lógico-formal ou fático da tipicidade (da tipicidade formal). Ocorre que a tipicidade, doravante, já não pode ser vista como puro juízo lógico-formal. Para além desse aspecto naturalístico ou fático, há também o jurídico (o valorativo, o axiológico). A tipicidade esgotava-se na mera subsunção formal da conduta à letra da lei quando o delito era visto como mera desobediência à norma (imperativa), quando não se considerava o seu aspecto valorativo, onde reside o bem jurídico; quando nenhum questionamento se fazia, para a consumação do crime, a respeito da afetação desse bem jurídico. Relevante, nesse sistema, era exclusivamente o resultado natural (modificação do mundo exterior causada pela conduta). O gravíssimo defeito dessa concepção, do ponto de vista substancial, é que ignorava o lado valorativo da norma, o bem jurídico, a afetação concreta desse bem jurídico (princípio da ofensividade), a razoabilidade assim como a proporcionalidade. E do ponto de vista normativo (legal) conflita totalmente com o disposto no art. 13 do CP, que diz: o resultado, de que depende a existência do crime, só é imputável a quem lhe deu causa. Todo crime, como se vê, tem de ter um resultado. Essa é uma exigência que está presente e muito presente no ordenamento jurídico brasileiro (art. 13 do CP). Ora, a que resultado está fazendo referência o art. 13 do CP? Só pode ser o jurídico, que está presente em todos os crimes (“o resultado, de que depende a existência do crime...”). Disso depreendemos, por conseguinte, duas conseqüências: (a) mesmo segundo a perspectiva formalista da dogmática clássica os delitos formais e de mera conduta contrastavam com a letra da lei, isto é, com o art. 13 do CP (admitia-se a consumação de tais crimes sem nenhum questionamento de um plus, isto é, do resultado jurídico); (b) o resultado a que se refere o art. 13 só pode ser o jurídico, não o naturalístico. Porque aquele – o jurídico – está (ou deve estar) presente em todos os delitos. De se considerar também o art. 14 do CP, que afirma que o crime se consuma quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal. Da definição legal de crime no Brasil faz parte o resultado jurídico, nos termos do art. 13 referido. Logo, não há que se falar (mesmo nos crimes formais e de mera conduta) que o crime se consuma sem a produção de qualquer resultado. Essa construção doutrinária (formalista) desenvolveu-se à revelia do que está escrito no Código Penal brasileiro. O que acaba de ser exposto não significa, de qualquer modo, que vamos jogar fora toda essa construção formalista (delitos materiais, formais e de mera conduta). Ela continua importante para o primeiro nível de valoração da tipicidade (isto é, para a constatação da dimensão fática da tipicidade). Saliente-se o seguinte: a tipicidade, doravante, passa a exigir dois grandes níveis de valoração: (a) subsunção ou adequação formal da conduta e do resultado naturalístico à letra da lei (essa é a dimensão fática da tipicidade, ou seja, é a tipicidade formal) e (b) dimensão axiológica (ou valorativa), é dizer, o fato formalmente típico deve ser objetivamente imputável ao agente e gerador de uma ofensa (lesão ou perigo concreto de lesão) ao bem jurídico protegido. Em suma: tecnicista, formalista, meramente subsuntiva, lógico-formal, essas foram as características marcantes da justiça penal, do Direito penal e da teoria do delito que foram ensinados e praticados em todo o século XX (sobretudo nos países periféricos). O fundamento da punição penal residia, em última análise, no aspecto subjetivo da “rebelião” ou “insubordinação” do sujeito diante de uma determinação normativa. É a concepção do delito como mera desobediência (à norma imperativa). Invoquemos uma vez mais a famigerada contravenção do art. 32 da LCP: o agente desobedecia à norma imperativa de dirigir e isso bastava para a infração penal. O juízo de tipicidade e, conseqüentemente, de antijuridicidade correspondia, assim, a um mero juízo de desvalor da ação ou mesmo da simples intenção do agente. Esse é um modo de ver o mundo em termos exageradamente prevencionistas. Não devemos, de qualquer modo, reprovar quem tenha essa preocupação preventiva exacerbada. Isso é (ou pode ser) positivo. O negativo da concepção aqui analisada é o fato de valer-se do Direito penal como instrumento de prima ratiopara atingir esses fins preventivos hipertrofiados. Há outras formas e outros instrumentos para se evitar riscos. Não queremos viver numa sociedade de riscos exacerbados. Não há dúvida que devemos nos indispor contra esses riscos, porém, não devemos nos valer sempre do Direito penal para isso. Medidas administrativas, sanitárias, medidas de polícia podem, muitas vezes, bastar para se atingir a finalidade de se evitar riscos exorbitantes. (CONTINUA)

UNIGRAN - Centro Universitário da Grande Dourados
FONE: (67) 3411-4141
Rua Balbina de Matos, 2121 - Jd. Universitário
CEP: 79.824-900 - Dourados/MS
Todos os Direitos Reservados

Baixe os apps Unigran


CONSULTE AQUI O CADASTRO DA INSTITUIÇÃO NO SISTEMA E-MEC